Otávio e Marcel fizeram fertilização in vitro e superaram muitos desafios até encontrar mulher que topasse gestar crianças.

Otávio (de óculos) e Marcel estão contando os dias para o nascimento dos gêmeos Victor e Matthew, previsto para março, em gestação por meio de um útero solidário (Arisson Marinho/CORREIO)

No mundo em que duas pessoas do mesmo sexo tem dificuldades para simplesmente se casar, imagine engravidar. Quando se trata de um casal homo afetivo masculino, os empecilhos são ainda maiores. Como fazer? Bom, aí tem que trilhar o caminho duro que os baianos Otávio e Marcel percorreram até finalmente conseguirem se tornar pais. Eles estão à espera dos gêmeos Victor e Matthew, que nesse momento são gerados no útero de uma mulher.

Qual o primeiro passo para alcançar esse sonho? “Se amar muito”, dizem Otávio, 53 anos, e Marcel, 31. O amor que os une manteve o casal firme em uma caminhada complicada. Até poder abrir esses sorrisos da fotos, encararam não só os mais diversos tipos de homofobia. Tiveram que encontrar um útero solidário e superar os limites da fertilização in vitro.

Finalmente, após três anos de tentativas e cerca de R$ 50 mil gastos apenas com o tratamento, Otávio e Marcel podem dizer: “Estamos grávidos!”. Apesar de tudo, eles garantem que valeu a pena. Por isso, estão aqui para contar suas histórias e encorajar outros casais.

Otávio e Marcel se conheceram pelas redes sociais, em 2011, através de amigos em comum no Facebook. Marcaram para se conhecer, se apaixonaram, iniciaram o namoro e logo deram de cara com o primeiro obstáculo: conseguir se casar como gostariam. Inclusive com um assumindo o sobrenome do outro. Sem que qualquer explicação fosse dada, foram informados que somente um deles poderia usar o nome do outro, não os dois. “Só disseram ‘não’ e mais nada!”, lembra Otávio.

Também tentaram que um oficial de justiça fosse deslocado até a festa que fariam para comemorar a união. Pagaram a taxa de deslocamento, mas não foram atendidos. “Eles simplesmente disseram: ‘não! Vocês vão ter que ir ao cartório”, lembra Otávio. “Era o início de tudo. Os gays começavam a ter esse tipo de direito. As nossas leis e os nossos funcionários públicos não estavam preparados para isso. Foi muito difícil!”, diz Marcel.

Enfim, Otávio e Marcel se casaram em 2013. Na documentação, um dos nomes foi colocado como noiva feminina (“a nubente”). Uma semana depois, eles fizeram uma festa para comemorar a ocasião. “Queríamos guardar na lembrança um momento bom”. A luta para conquistar os nomes também foi vencida. “Não aceitamos aquilo e contratamos um advogado”, diz Otávio. Dois anos depois, finalmente se tornaram um casal com mesmo sobrenome.

Otávio Cerqueira Gouveia, 53 anos, tem uma empresa de imigração para estrangeiros que querem ir para o Canadá. Marcel Cerqueira Gouveia, 31, é enfermeiro de formação e atualmente trabalha como consultor de imigração canadense. Moram tanto lá quanto cá, divididos entre o Canadá e a capital baiana.

Otávio já tem quatro filhos. Três de um relacionamento com uma mulher, todos adultos, e também Christian, filho adotivo desde 2011. O menino, que mora com o casal, foi peça chave para que Victor e Matthew estejam prestes a nascer. Foi Christian que despertou em Marcel a vontade de também ter um filho. “A verdade é que eu nunca fui muito fã de criança, não pensava em ter um filho. Mas a convivência com Christian me levou a isso”.

Pronto, aí começa a busca pela paternidade. “Só que parecia tudo muito difícil. Quando você vê na Tv alguma matéria sobre fertilização in vitro, útero solidário, enfim, você só vê artista, gente muito rica ou gente famosa. A imagem que passa é de algo para muito pouca gente. Se você é gay e quer ter um filho, se prepare! Mas aí a gente disse: ‘Vamos lá’. Vamos em uma clínica”.

Apesar das facilidades no Canadá, eles optaram por uma clínica em Salvador, por causa do suporte da família. Otávio e Marcel se encaixavam no processo de ovodoação e foram incluídos em um banco de dados que buscava óvulos com as características escolhidas por eles.

O casal então escolheu altura, cor da pele e dos olhos do bebê. Era possível também escolher características como nível educacional e temperamento da mãe. “Mas isso é tão relativo…”, diz Otávio. A mulher que doa o óvulo deve ser anônima.

O passo seguinte é saber qual sêmen vai ser usado. “Você tem as opções de escolher um ou outro como pai biológico, mas pode também misturar os dois sêmens, que foi o que fizemos. Claro, apenas um dos dois fecunda. Nossa opção foi não saber qual dos dois é o pai genético”.

Útero

Então, é hora de fazer a fecundação em laboratório e congelar os embriões. O problema é o que vem depois. O passo mais difícil é encontrar uma mulher para gerar a criança (ou as crianças). Um processo complicado e, por vezes, dolorido. Primeiro, Otávio e Marcel saíram pedindo para familiares e surgiu a primeira candidata: a irmã de Marcel.

Em julho de 2017, foram transferidos dois óvulos para o útero dela. Doze dias depois, descobriram que não deu certo. Um mês depois, a segunda tentativa também não vingou. “Descobrimos que, quando dá errado, é algo devastador. Estávamos com uma grande expectativa de que iria dar certo. Eu sofri muito”, lembra Otávio.

A sugestão da clínica foi trocar de útero. O casal deu um tempo para digerir as perdas e depois começou a procurar pela nova mãe. Dois anos depois, Otávio e Marcel receberam uma ligação. “Uma amiga disse que refletiu bastante e iria fazer. Inicialmente eu não levei fé, mas depois pareceu muito disposta”.

Um psicólogo confirmou que ela estava realmente decidida. E veio outro problema: a lei brasileira só permite transferência de embriões para parentes até quarto grau de um dos membros do casal. Mas faz uma observação para casos em que não deu certo com familiares. Aí é possível pedir autorização excepcional para o Conselho Regional de Medicina (CRM-BA).

Os conselheiros do CRM aprovaram o pedido e a autorização foi enviada para a clínica. Em 1º de julho de 2019, os embriões foram transferidos para o útero solidário. Doze dias depois, as taxas de beta hcg estavam muito altas, sinal de que havia gravidez e provavelmente de gêmeos. Uma ultrassonografia confirmou.

Otávio e Marcel também viveram as expectativas de qualquer casal, como os primeiros três meses de risco. “É muito desgastante! Agora rola um relaxamento total”, diz, aliviado, Marcel. Até um perfil no Instagram foi criado. Pelo @diariode2pais é possível acompanhar o passo a passo dessa história de amor.

A mulher que disponibilizou o útero está na 35ª semana de gravidez. Uma pequena parte da família dela sabe, pois preferiu que nem todos soubessem. Por isso, pediu uma licença no trabalho e foi morar em outra cidade. Ela já tem filhos e está certa que não quer ser mãe.

Otávio e Marcel dizem que ela fez tudo por altruísmo e acreditar no amor dos dois. Não cobrou nada por isso. Claro, os custos da maternidade, como roupas, médico e medicamentos, foram pagos por eles. “O que ela está fazendo por nós não tem preço”.

Contrato

O parto que dará à luz Victor e Matthew, uma cesárea, está marcado para o dia 2 de março. Mas será um nascimento diferente. Ele é regido por um contrato onde a mulher que “emprestou” o útero atesta que os filhos não são dela, seja geneticamente, socialmente ou moralmente.

Por isso, depois que os bebês nascerem, não terão o mínimo contato com a gestora. Não há sequer amamentação “Não tem contato pele a pele, não tem sucção de mama, não tem aleitamento, não tem nada”, explica o ginecologista Eliomar Lyrio, diretor médico do Hospital Português, onde ocorrerá o parto.

A estrutura para o nascimento de Victor e Matthew terá dois quartos separados em andares diferentes. “Os bebês serão levados para o quarto dos pais, enquanto a mulher que os gestou vai para o outro parto”, detalha o médico. Os pais então vão receber as crianças e alimentá-las por fórmula em mamadeira.

“Eles nos abraçaram, adotaram nosso caso e abriram todas as exceções possíveis”, dizem os pais, sobre o hospital. Victor e Matthew já sairão do Português como filhos de Otávio e Marcel. “Temos um cartório dentro do hospital e as crianças serão registradas ali com os nomes dos dois pais”, explica o médico.


O que diz a lei

A lei brasileira que rege a reprodução humana (resolução 2168/2017 do Conselho Federal de Medicina) serve tanto para casais héteros como homoafetivos. No caso de gestações como úteros solidários para casais masculinos, a pessoa envolvida deve ter parentesco com um dos membros do casal até, no máximo, quarto grau. Tanto a clínica quanto o hospital onde é feito o parto solicitam documentação que comprove o grau de parentesco. Nos casos em que não há parentes dispostos a “emprestar” a barriga, é necessário um parecer do Conselho Regional de Medicina (CRM) que libera a gestação.

A lei também faz observação a respeito das características físicas dos doadores de óvulos e sêmens. Quem for utilizá-los não pode ter características muito díspares. Apenas dois embriões podem ser transferidos para dentro do útero no caso de a produtora do óvulo ter menos de 35 anos. Se tiver entre 35 e 40, podem ser transferidos três; e acima de 40 anos, pode transferir até quatro embriões.

Com um casal de mulheres, o processo é mais fácil porque não envolve um útero solidário. Em geral, apenas escolhe-se de qual das duas será o óvulo a ser fecundado e busca-se sêmen em um banco. Em seguida escolhe-se também quem vai receber o embrião e engravidar. Em alguns casos, o que é permitido por lei, uma das mulheres doa o óvulo e a outra gesta. Ou seja, uma se torna a mãe genética e a outra, a que passou pela gestação.

Segundo o médico ginecologista Agnaldo Viana, especialista em reprodução humana da clínica IVI, casais héteros ainda são maioria nos tratamentos para fertilização in vitro, mas o número de casais homoafetivos só cresce.

Ele afirma que até mesmo produção independente tem ocorrido – apenas a mulher ou o homem quer ter um filho. “São pessoas que geralmente já passaram dos 40 anos, não encontraram um parceiro e querem ter um filho. Esse mês, pela primeira vez, atendi um homem querendo produção independente”, revela. Nesse caso, o homem precisa procurar um útero solidário. “Engravidar não é só o sêmen e o óvulo. É também o útero. Ainda não desenvolvemos uma incubadora mágica. Não dá pra criar um bebê em laboratório. Precisa de uma mulher”.

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