Grupos disputam pontos de comércio de drogas na capital e no interior do estado
Grupos disputam pontos de comércio de drogas na capital e no interior do estado – Foto: Polícia Federal

Armamento pesado, metralhadoras, granadas, equipamento de guerra, um verdadeiro arsenal à disposição do crime. Em julho deste ano, uma ação conjunta entre as polícias Civil, Militar e Federal resultou na apreensão de 13 fuzis e outros equipamentos que seriam usados na chamada “Guerra do Tráfico”. Esta foi a maior apreensão registrada desse tipo na Bahia. Só no primeiro semestre de 2023, foram 35 fuzis apreendidas pelas forças policiais. E qual seria a origem do armamento? Ao Portal A TARDE, especialistas e autoridades indicam que as armas foram fornecidas por facções do eixo Rio-São Paulo, que têm coligação com organizações criminosas na Bahia. O material seria usado para invadir e conquistar territórios de rivais, além de outros objetivos.

Ainda sobre o desfecho da operação policial feita em julho, as investigações apontaram que as armas apreendidas faziam parte de aparato fornecido pelo Comando Vermelho (CV), facção do Rio de Janeiro que se estabeleceu de vez na Bahia após um ‘casamento’ com o Comando da Paz, em meados de 2020. Na ocasião, inclusive, o grupo havia acabado de realizar uma investida contra a facção denominada Bonde Do Maluco (BDM), que é visto como o principal rival no estado.

Conexões

No início de agosto deste ano, Márcio Arandiba Santos, o ‘Tila’, foi localizado e preso em Curicica, no Rio de Janeiro. Ele é apontado como braço do CV em Ilhéus. Foragido da Bahia desde 2018, quando recebeu um benefício de indulto do Conjunto Penal de Jequié e não voltou mais, ele orquestrava, mesmo à distância, ataques, determinava execuções, roubos e comandava outros tipos de ações.

Do outro lado da moeda, o Primeiro Comando da Capital (PCC) também chegou a se estabelecer na Bahia por meio de uma aliança com o BDM. Em maio deste ano, durante a operação Terra Livre, a Polícia Federal descobriu que o grupo transformou a Ilha de Maré, em Salvador, em um centro de operações do crime.

“Essa ilha é o lugar de refúgio de grandes traficantes do BDM. Por ser um local isolado, serve como um grande bunker, esconderijo de drogas e armas, além de refúgio após algum ato ilícito, a exemplo de ataques a instituições financeiras, ataques a facções rivais para expansão territorial do BDM, em Salvador”, disse a PF na ocasião.

Diferente do casamento entre o CP e o CV, a aliança entre o BDM e o PCC seria mais um ‘acordo de negócios’ e estaria enfraquecida com a chegada de um terceiro elemento, a Terceiro Comando Puro (TCP), principal rival do CV no estado do Rio de Janeiro.

“Há dois ou três anos que seus integrantes [do TCP] se intitulam como uma organização maior, com hegemonia no estado do Rio de Janeiro [em relação ao CV]. Aqueles que operam com essa atividade, principalmente com comércio ilegal de drogas, buscam rotas para adquirir esses produtos com custo menor e trazer uma vantagem econômica maior”, disse o diretor do Departamento Especializado de Investigação e Repressão ao Narcotráfico (Denarc-BA) José Alves Bezerra.

Causa e consequência

Conforme o titular da Delegacia de Repressão a Entorpecentes e do Grupo de Investigações Sensíveis da Polícia Federal (PF), Rodrigo Andrade, a aliança feita pelas facções da Bahia ainda seria uma forma de autoproteção. “Os que eram do Comando da Paz fizeram aliança com os do Comando Vermelho. Então, se o BDM ficasse aqui sozinho, com certeza o Comando Vermelho viria muito mais forte e uma hora tomaria tudo”.

No entanto, não são apenas essas duas facções que tiram o sono da população baiana, afetada pela violência gerada na briga pelo poder paralelo. Segundo informações que o Portal A TARDE teve acesso com exclusividade, já foram catalogadas aparições de ao menos 35 facções criminosas em território baiano. Algumas pequenas e com atuações restritas, outras grandes e com alcances interestaduais, como é o caso do BDM, do Comando da Paz (agora Comando Vermelho) e a Katiara.

“A gente observa uma maior organização de grupos criminosos aqui na Bahia, principalmente com a chegada dessas facções [PCC e CV] de âmbito nacional nos últimos anos. Está acontecendo não só na Bahia, mas no Brasil inteiro. Essas facções, digamos, maiores, estão engolindo as facções regionais locais. Por conta da chegada dessas novas facções, essa disputa de território aumentou e a gente está vendo uma escalada de violência”, pontuou Diego Gordilho, delegado da PF que atua no mesmo departamento de Andrade.

Organizadas, e com tarefas bem distribuídas, as facções funcionam como verdadeiras empresas do crime. No entanto, existe uma pequena variação: os papeis geralmente são distribuídos em liderança, os chefões do crime, além do gerente, de joker (uma espécie de multifunções) e do líder de bonde (responsável por comandar invasões e ataques a grupos rivais).

“No passado não muito distante, era uma visão muito mais local. Mais imediatista. [O traficante] ia numa boca de fumo e vendia a droga. Hoje, já existe uma visão muito mais empresarial, um business. E aparece a necessidade de fazer circular [mercadorias], expandir territórios. As possíveis alianças com criminosos de outros estados nada mais é do que essa tentativa de expandir o seu mercado, expandir as ramificações para gerar mais business e mais em dinheiro criminal”, continuou Gordilho.

PCC e CV na Bahia

De acordo com o delegado Regional de Polícia Judiciária da Polícia Federal, Marcelo Andrade Siqueira, a Bahia se tornou um alvo das facções do eixo Rio-São Paulo devido a sua localização estratégica, seus portos e potencial consumo.

“A Bahia é um grande corredor para o Nordeste. [A droga] vem do Sudeste e do Oeste, após entrar pela Bolívia, Peru, os países produtores. Aqui, o destino geralmente é a Europa. No caso, via navio. O Brasil é um grande exportador de cocaína para Europa”, explicou.

Uma vez aqui, as drogas ‘ganham’ o mundo. “As facções nacionais estão associadas a outras internacionais. Existe uma associação com uma facção importante da Itália que domina o Porto ali da região da Calábria. Então assim, essa exportação já sairia daqui do Brasil, iria ali para o sul da Itália e ali já teria uma organização criminosa da Itália que pegaria essa droga para fazer a difusão lá na Europa”, continuou.

O colega de corporação, o delegado Gordilho, acrescenta que não só de exportação vivem as alianças. Em diferentes ocasiões, os ‘casamentos’ ou acordos são alimentados por “troca de favores” e o interesse no mercado local.

“As drogas chegam para abastecer o mercado local e o mercado de exportação. Então, cidades como Salvador, que têm portos que fazem a conexão internacional, servem para o abastecimento do mercado interno e exportação para países da Europa, África”, explicou o delegado.

Para funcionar, o esquema conta com a ajuda de funcionários de portos e empresas que, muitas vezes, seriam integrantes dessas facções.

Andrade relembra algumas apreensões de cargas dentro de contêiner de fruta. “De alguma forma, esse caminhão é desviado no caminho. Existem várias formas, mas a principal é quando o motorista desvia, leva para um galpão. Ao chegar no galpão, os integrantes do esquema trocam caixas de fruta por caixas de cocaína[…] A gente já pegou empresa exportadora envolvida no caso. A droga já era colocada dentro da própria empresa. A empresa era criada com a justificativas de exportação de fruta. Mas, na verdade, o objetivo principal era colocar droga”.

Mudança de “fechamento”

Após um suposto fracasso do PCC em se fixar de vez na Bahia, como em outros estados do Nordeste, surgiu uma aproximação entre o BDM e o TCP. Um vídeo que voltou a circular as redes sociais trouxe à tona a aliança entre a rival do CV na Bahia com a do Rio.

As imagens mostram as siglas do BDM e TCP pichadas em uma parede em Santo Amaro. Segundo os dados obtidos pela reportagem, o BDM possui o maior domínio territorial na capital baiana. Ao todo, a estimativa é de que o “tudo 3”, como é referenciada, ocupe 75 localidades em Salvador. Já a segunda maior da capital, o CP/CV estaria estabelecida em 35 delas. Entre as localidades, está o complexo do Nordeste de Amaralina, o maior conjunto de bairros da cidade.

Já a Katiara, que não teria uma aliança fixa com nenhuma delas, mas acordos comercias, ocuparia parte de um território cobiçado por todas as facções locais, a região de Valéria, próxima da BR- 324. “A localidade é estratégica. Ali é a saída e a entrada da cidade, um ponto interestadual. Um local de grande interesse, tanto que há uma disputa entre duas ou três facções criminosas que tentam controlar a região”, disse Andrade.

Apesar de considerar a área de atuação, o delegado Gordilho salienta que os domínios dos grupos criminosos costumam ser sazonais .”Isso não é uma coisa fixa. Esses territórios são sempre alvos de disputas”.

“No último período [de disputa], houve uma movimentação das organizações ligadas ao tráfico de armas e de drogas para todo o Nordeste. Na Bahia, somado a isso, aconteceu uma pulverização, com o comércio feito por diversas organizações. A existência desse conjunto amplo impacta na ocorrência de eventos de confronto por disputa de mercado e outras brigas”, destacou Dudu Ribeiro, especialista em Segurança Pública.

Disputa de território entre facções é motivada pelo tráfico de armas e drogas
Disputa de território entre facções é motivada pelo tráfico de armas e drogas
| Foto: Leo Moreira | Ag. A TARDE

Em julho, o Instituto Fogo Cruzado mapeou 178 tiroteios que resultaram na morte de 151 pessoas e deixaram 36 pessoas feridas, em Salvador e Região Metropolitana. Do total de tiroteios registrados, 67 deles ocorreram durante ações e operações policiais e deixaram 64 pessoas mortas e 12 feridas.

Das 64 mortes registradas nessas ações, duas foram por bala perdida. Julho é o mês com o maior número de pessoas mortas em ações policiais desde que o instituto iniciou seu mapeamento, em julho de 2022. No meio da “Guerra do Tráfico”, inocentes são atingidos. Segundo estimativa da Polícia Civil, cerca de 75% dos homicídios cometidos no estado teria ligação, seja de forma direto ou indireta, com o comércio ilegal de entorpecentes.

Modus Operandi

A chegada de facções do eixo Rio-São Paulo trouxe também a influência e o Modus Operandi dessas organizações criminosas. Ataques orquestrados, como barricadas para dificultar a ação policial, sequestro e roubos de empresas privadas, monitoramento através de câmeras instaladas na localidade, cobranças de serviço de internet e assédios a moradores, além do embate mais frequente com as forças policiais, são observadas pelas forças policiais.

“Então, de uma certa forma, deixa de ser uma imitação do que acontece em outros lugares. Em outros pontos, a gente tem visto a atuação do Comando Vermelho bem parecida com a que acontece em Salvador, baseada no papel que desempenham no Rio. Barricadas, incêndios em ônibus, essa violência contra as forças policiais. Questões de exploração de internet, assalto a caminhão de estabelecimento comercial. Modus operandi já conhecido dessa facção no Rio de Janeiro”, disse delegado Marcelo Andrade.

Para Dudu Ribeiro, o crescimento da violência também tem a responsabilidade do Estado. “Acredito que mais do que indícios da presença dessas organizações, a gente tem observado, talvez nos últimos cinco anos, a migração das organizações para o Nordeste. É o resultado da continuidade de uma política chamada de guerras às drogas, que não é uma guerra contra substâncias, é uma guerra contra as pessoas. E isso não tende a desmontar as organizações, pelo contrário, fortalece os grupos, pois o aprisionamento de pessoas tem alimentado as demandas dentro do sistema prisional. A própria lógica da guerra também tem permitido a circulação de armas dentro dessas organizações, inclusive através da corrupção de agentes do Estado”.

Em diferentes ocasiões, as celas e os muros do sistema prisional não impedem que os chamados chefões do crime comandem os seus grupos. Em março deste ano, 24 detentos foram transferidos para unidades de segurança máxima na Bahia. A medida visa dificultar a comunicação entre eles e integrantes de facções criminosas responsáveis por homicídios no estado.

Investimento

No intuito de combater o crescimento e a aproximação do crime organizado, surgiu a Força Integrada de Combate ao Crime Organizado (FICCO), lançada e assinada no início deste mês. A iniciativa reúne no mesmo local físico forças policiais federais, civis, militares, peritos técnicos e bombeiros.

“A importância da FICCO são duas: atuação de forma conjunta e também a integração da inteligência das instituições. A Polícia Federal tem a inteligência de algumas facções que atuam na Bahia e em outros estados. As autoridades da Bahia focam nas facções baianas e, a partir da junção desses conhecimentos, faremos um combate ainda mais eficiente”, disse o delegado da Polícia Federal, Ricardo Andrade Saadi.

“Com o uso da inteligência policial, com o intuito de identificar possíveis organizações criminosas, principalmente aquelas mais nocivas, mais violentas no nosso estado, no sentido de desarticular essas organizações. As forças de seguranças da Bahia se entendem bem, atuam de forma integrada. E isso potencializa resultados positivos”, acrescentou o delegado da Denarc, Bezerra.