“Foram um ano e sete meses de racismo velado, mensagens subliminares até a mais direta impossível. Desde que entrei, e acho que fui convidada pela PBH [Prefeitura de Belo Horizonte] pelo meu trabalho com o ativismo negro, sofri várias microagressões. Mas eu buscava êxito para as políticas públicas para os jovens de BH, fui deixando de lado e indo em frente. Mas, agora, não dá mais”.

O depoimento dado ao BHAZ no início da tarde desta quinta-feira (1º) é da jornalista e publicitária Etiene Martins, de 35 anos, gerente de Prevenção à Violência da Secretaria Municipal de Segurança e Prevenção de Belo Horizonte (SMSP), que denunciou na noite dessa quarta-feira episódios de racismo e omissão vividos por ela dentro da administração municipal.

O post publicado em sua conta particular no Facebook expõe situações vividas pela funcionária no âmbito do ambiente de trabalho da Prefeitura de Belo Horizonte (PBH). Duas das situações são retratadas em mensagens de dois superiores de Etiene – uma do secretário Municipal de Segurança e Prevenção, Genilson Zeferino (leia abaixo no print screen de mensagem dele para ela, via celular), e outra da chefe imediata dela, Márcia Cristina Alves, diretora de Prevenção à Criminalidade.

‘Preto bom é preto morto’

De acordo com Etiene Martins, em novembro de 2018, após sua gerência realizar um seminário sobre crime e violência contra adolescentes e jovens, no Teatro Francisco Nunes, ela foi abordada por um guarda que compõe a Guarda Municipal de BH. Ele assistia ao evento e teria dito: “Preto bom é preto morto”.

Assustada com a postura do servidor, que também atua como motorista na sua gerência, Etiene logo chamou a atenção dele e pediu que ele se desculpasse. “Ele falou: ‘É brincadeira’”, mas não se desculpou.

‘Sem tornar público nossas fraquezas (sic)’

“Imediatamente, fui até o secretário [Genilson Zeferino] contar o que havia acontecido, mas o evento estava cheio e tinha muita gente querendo falar com ele. Ele só me disse: “Calma, calma, vamos conversar”. Ao voltar do almoço, recebi uma mensagem dele, pedindo que eu não procurasse a polícia, nem tornasse o caso público naquele momento. Que o prefeito já havia sido comunicado do fato”, conta ela.

(Facebook/@etienemartins/Reprodução)

Com a garantia dada pelo secretário Zeferino que o caso tinha sido relatado ao prefeito Alexandre Kalil, Etiene aguardou alguns dias. “Como não fui mais contatada, decidi enviar um e-mail para minha chefe imediata, Márcia Cristina Alves, diretora de Prevenção à Criminalidade da SMSP, pedindo uma orientação sobre o que fazer e ela me indicou ir na Corregedoria. Voltei a procurar o secretário Zeferino, via e-mail, e ele me orientou a fazer o mesmo. Ele ainda me disse que se eu levasse a ideia adiante, o ambiente de trabalho iria ficar insustentável e que, inclusive, ele estava preste a sair do cargo que ocupa e como o guarda municipal estava como motorista do secretário-Adjunto, que assumiria o cargo em seu lugar, provavelmente assim que ele saísse eu seria exonerada”, conta.

A mulher conta que todo o procedimento interno foi seguido e ela não tornou público o caso. “Era um conflito pra mim lidar diariamente com o guarda que havia me falado que ‘preto bom é preto morto’, justamente para a única gerente preta da secretaria! A gente se encontrava no elevador, no corredor e, como ele era motorista da minha gerência, passei a fazer trabalhos externos por minha conta, sem usar o transporte. O homem tem dois metros de altura e anda armado. Tive medo”, relata.

Corregedoria viu ‘fala inapropriada’

Passados seis meses da denúncia feita à Corregedoria, Etiene Martins disse ter recebido posicionamento do órgão com o seguinte veredicto: “Eles concluíram que a fala do guarda não configurava dolo, mas sim uma fala inapropriada no local de trabalho. Me senti injustiçada e no dia seguinte fiz um boletim de ocorrência na Polícia Civil, levando o inquérito instaurado na Corregedoria em que em um dos depoimentos o guarda admitiu ter dito que ‘preto bom é preto morto’. Ele falou ainda que ‘não tinha sido por maldade, que tinha sido de pura alma e uma brincadeira’”, diz.

Ela revela que um dia após ter feito o BO, sua chefe imediata, Márcia Cristina Alves mandou um e-mail para ela, com teor claro de racismo, no qual escreve: “Depois da sua argumentação de hoje, você me faz constatar que para representar a SMSP é necessário um gerente branco como o Sebastião e lugar de negra é limpando chão”.

Na foto abaixo, a jornalista e funcionária postou montagem de foto em que aparece com Márcia Cristina Alves e a reprodução de mensagem enviada pela superior.

(Facebook/@etiennemartins/Reprodução)

“O fato da Corregedoria não ter punido o guarda municipal deu a ela coragem de fazer o mesmo. Eu, já cansada de tudo isso, foquei no trabalho e fiz vistas grossas, mas chega uma hora que a gente não dá conta e entreguei junto ao meu pedido de exoneração esse e-mail. O secretario me garantiu que iria apurar, chamou um técnico da Prodabel para verificar a veracidade do e-mail, que constatou que a mensagem realmente tinha sido enviada do IP do computador da minha chefe. Fui mudada de setor e o secretário [Genilson Zeferino] me disse para ficar tranquila que o processo estava na Corregedoria e haveria uma responsabilização”.

No último dia 28, quando esteve na Corregedoria novamente para ver o andamento do processo, Etiene Martins oficializou nova queixa e, segundo ela, foi atendida pelo relator responsável pelo processo no corredor da recepção, diante de outros servidores e visitantes. “Me senti constrangida no meio de tanta gente. Ele me disse que eu seria chamada a depor e nada ocorreu”.

Novo depoimento em 20 de agosto

Nomeada gerente de Prevenção à Violência da SMSP de Belo Horizonte em outubro de 2017, Etiene Martins é especialista em comunicação e saúde e ativista do movimento negro na capital desde a juventude. Ex-coordenadora de Igualdade Social da Prefeitura de Sabará, na Grande BH, sempre jogou luz sobre a questão racial em seus trabalhos.

Após seu post ter sido publicado na noite dessa quarta-feira (31), Etiene Martins diz ter sido procurada na manhã desta quinta pela Corregedoria da PBH para agendar um depoimento. Procurada pelo BHAZ para ter um posicionamento da administração municipal sobre o caso, a Secretaria Municipal de Segurança e Prevenção informou que está apurando com rigor as denúncias de racismo feitas pela servidora (leia abaixo nota na íntegra).

“Depois de tudo isso, eles me procuraram para agendar para 20 de agosto. Hoje não consegui sair de casa ainda, e acho que já deu. Estou avaliando se vou redigir a carta com meu pedido de exoneração. A única coisa boa é que meus amigos e familiares estão me apoiando e me dando o suporte de que preciso agora. Lamento que o corporativismo da Guarda Municipal de Belo Horizonte não tenha permitido que o caso fosse julgado de forma justa”.

Questionada se faria algo diferente, ela diz. “Errei no primeiro momento, quando o caso ocorreu, de não torná-lo público. Estava sofrendo sozinha e a gente vai aceitando essas agressões no dia a dia. Eu sempre pensava em aguentar um pouco mais, pelo trabalho, pois é uma política importante para a juventude de BH, mas não deu mais”.

Nota da Secretaria Municipal de Segurança e Prevenção de Belo Horizonte na íntegra

“A Secretaria Municipal de Segurança e Prevenção está apurando com rigor as denúncias de racismo feitas pela servidora. Esclarecemos que o episódio envolvendo o agente da Guarda Municipal ocorreu durante um evento promovido pela pasta, que reunia representantes de movimentos em defesa da igualdade racial com o objetivo de construir políticas voltadas para a redução do elevado índice de homicídios praticados contra jovens negros, tema que é alvo de atenção especial na SMSP.

Na ocasião, os procedimentos para a apuração interna da denúncia foram iniciados imediatamente, no âmbito da própria secretaria, por parte da Corregedoria da Guarda Municipal. A investigação minuciosa dos fatos resultou na conclusão pelo arquivamento do processo contra guarda municipal.

Com relação à acusação feita contra a diretora de Prevenção, a apuração detalhada do teor da denúncia segue seu trâmite na Subcontroladoria de Correição do Município. A análise  da veracidade de mensagens enviadas por e-mails institucionais, divulgadas em redes sociais pela servidora,  está em curso com o mesmo rigor.”